O "Toque de Midas" é realmente valioso?
Para além da mitologia de um conto secular, ser extremamente rentável e excepcional pode ser o motivo da morte da criatividade simplista
O "Toque de Midas" é uma expressão comumente usada para descrever alguém que frequentemente transforma qualquer coisa em ouro (não literalmente, como na mitologia) , trazendo grandes lucros, fama e reconhecimento.
Para trazer uma reflexão sobre como esse efeito pode afetar a mente de criativos é necessário acrescentar o contexto completo dessa história.
O Desejo
Midas era um rei dono de uma grande fortuna, que controlava o país de Frígia, na Ásia Menor. Ele tinha tudo que um rei poderia desejar: vivia de forma luxuosa em um grande castelo e compartilhava sua vida abundante com sua linda filha.
Mesmo sendo rico, Midas pensava que a verdadeira felicidade era fornecida pelo ouro. A avareza do rei era tanta que ele costumava passar seus dias contando suas moedas de ouro. Ocasionalmente, ele cobria seu corpo com objetos de ouro como se quisesse se banhar com eles. O dinheiro era sua obsessão.
Um dia, Dionísio, o deus do vinho e das comemorações, passou pelo reino de Midas. Um dos seus acompanhantes, um sátiro chamado Sileno, atrasou-se durante o percurso. Sileno ficou cansado e decidiu tirar uma soneca no famoso jardim de rosas que rodeava o castelo do rei Midas.
O rei o encontrou, reconhecendo-o imediatamente e convidando-o para passar alguns dias em seu palácio. Depois disso, levou-o para Dionísio. O deus da celebração, muito grato a Midas por sua gentileza, prometeu realizar qualquer desejo seu.
Midas pensou por um momento e disse: “eu desejo que tudo que eu tocar se torne ouro!” Dionísio advertiu o rei que pensasse bem sobre seu desejo, mas ele estava bem satisfeito com ele. Dionísio não pôde fazer mais nada e prometeu ao rei que daquele dia em diante tudo que ele tocasse viraria ouro.
A Maldição
Naquele dia, Midas acordou ansioso para ver se seu desejo tinha sido realizado. Ele estendeu um braço e tocou uma pequena mesa, que imediatamente virou ouro. Ele pulou de alegria. Depois, ele tocou na cadeira, no tapete, no chão, na sua banheira e na mesa.
Ele continuou com sua loucura por todo o palácio, até que ficou exausto e feliz ao mesmo tempo. Ele sentou à mesa para tomar café da manhã e pegou uma rosa para sentir sua fragrância. Quando a tocou, a rosa virou ouro.
“Terei que aspirar a fragrância sem tocar nas rosas, eu acho.” Pensou ele, desapontado.
Sem nem pensar, ele tentou comer uma uva, mas ela virou ouro. O mesmo aconteceu com uma fatia de pão e com um copo de água. De repente, ele começou a ficar com medo.
Lágrimas encheram seus olhos e, nesse momento, sua amada filha entrou na sala. Quando Midas a abraçou, ela virou uma estátua de ouro. Desesperado e aterrorizado, ele levantou suas mãos e rezou para Dionísio tirar essa maldição dele.
A Reparação
O deus ouviu Midas e sentiu pena dele. Ele disse ao rei para ir ao rio Pactolo e lavar suas mãos. Foi exatamente o que Midas fez: correu para o rio e ficou atônito ao ver o ouro saindo de suas mãos. Os antigos gregos diziam que encontraram ouro às margens do rio Pactolo.
Quando ele voltou para casa, tudo que havia tocado voltara ao normal. Midas abraçou sua filha em completa felicidade e decidiu dividir sua grande fortuna com seu povo. Daquele momento em diante, Midas se tornou uma pessoa melhor, sendo generoso e grato por todas as bênçãos em sua vida.
O seu povo levou uma vida próspera e, quando ele morreu, todos lamentaram pelo seu amado rei.
Quando me peguei pensando nesse mito a conexão com a realidade de trabalhar com a criatividade foi instantânea, estamos a todo momento nos cobrando e sendo cobrados por uma produtividade excepcional. Basicamente a todo momento vemos um boom e surgimento de pessoas e criações "da noite para o dia", como se a construção desta fosse uma mera noite bem dormida.
A rapidez da internet acelera mentes e mãos que produzem esse ouro e a demanda passa a ser cada vez mais inviabilizada, devemos viralizar, temos que bombar, tudo que fazemos têm que cativar de uma forma única, afinal todos precisam do "Toque de Midas"?
Como estou inserida de forma completa no universo da Moda, o click para essa reflexão veio através das diversas apresentações da marca Schiaparelli. Em suas ultimas coleções a representação corporal em acessórios de ouro me trouxeram a memória desse famoso mito de Midas.
Como pode uma marca ter um toque de Midas tão preciosista? A cada novo lançamento parece que eles fabricam sonhos em ouro! (dá pra perceber que sou um pouco fã né?)
Mas apesar dessa admiração por criações exuberantes e fora da realidade, o que acredito que precisamos refletir é na normalização do "mediano".
Sinto lhe dizer, mas não precisamos que toda a humanidade tenha o "Toque de Midas" e não, não vim aqui para dizer que o potencial criativo deve ser limitado e sim para te lembrar que ouro não se garimpa em apenas uma peneirada.
É preciso muito esforço, tentativas frustradas, criações simplistas que atendam a necessidade básica e até mesmo a mediocridade para que o seu garimpo pelo ouro seja de fato efetivo. Afinal todo "Toque de Midas" têm sua maldição e nem tudo que brilha é ouro.
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